06 Agosto 2021
"Francisco, para poder permanecer fiel ao Concílio Vaticano II, não podia deixar de revogar uma lógica “incerta e confusa” sobre a reforma litúrgica. O único rito vigente é o elaborado depois do Concílio, por indicações claras do próprio Concílio. Não existe outro rito: existe apenas a “forma anterior”, que, pelos seus graves limites, foi revista e remodulada. Sobre esse ponto, não há nenhum espaço de mediação possível".
A opinião é de Andrea Grillo, teólogo italiano e professor do Pontifício Ateneu Santo Anselmo, em artigo publicado em Come Se Non, 03-08-2021. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Caro Padre Abade,
Li com muito prazer a sua resposta (aqui, no original em italiano) às minhas considerações (aqui, no original em italiano) que eu dediquei à sua entrevista anterior.
Parece-me que, na diversidade de itinerários com os quais avaliamos com partícipe precisão a “questão litúrgica” como um problema decisivo para a Igreja do presente e do futuro, emergem alguns perfis sobre os quais é necessário lançar uma luz de clareza plenamente convincente.
Por isso, examino as suas três afirmações-chave e as submeto a um exame sincero, reconhecendo plenamente a boa intenção que guia a sua solicitude, mas assinalando de maneira igualmente franca onde eu encontro os maiores problemas da sua respeitável abordagem.
O senhor identifica muito bem a minha dificuldade fundamental. Não existem duas formas do rito romano, mas as resistências à reforma litúrgica (pré-conciliar e conciliar) desenvolveram uma argumentação objetivamente “negacionista” a respeito da reforma.
O fato de o Papa Bento XVI ter assumido essa perspectiva de leitura não a torna verdadeira. As coisas equivocadas permanecem equivocadas, mesmo quando são assumidas por bispos e por papas.
Para entender isso bem, devemos nos perguntar: quando nasceu essa “argumentação”? O senhor cita o cardeal Lustiger e o cardeal Ratzinger, mas já estamos nos anos 2000. Não, a argumentação nasceu com a mais antiga das reformas mais recentes: ou seja, com a “reforma da Vigília Pascal” desejada por Pio XII e proposta “ad experimentum” em 1951 para toda a Igreja.
Naquela ocasião, nas avaliações que os bispos de todo o mundo enviaram a Roma, destacava-se a reação do arcebispo Giuseppe Siri, de Gênova, que propunha que a “reforma da Vigília Pascal” dissesse respeito a quem quisesse aderir a ela, enquanto quem não quisesse poderia ficar livres para seguir o “Vetus Ordo”.
Já há 70 anos apareceu essa “opção” que, se assumida, esvaziaria de sentido a reforma da época. A mesma coisa, 15 anos depois, foi proposta por Marcel Lefebvre, logo após o Concílio, pedindo para poder continuar celebrando com o Vetus Ordo, mesmo que a Igreja Católica tivesse produzido uma “reforma geral” de toda a liturgia.
Pois bem, aquilo que devemos aprender é que o “mecanismo reflexivo” que pretenderia que dois ritos, tanto o novo quanto o antigo, sejam vigentes ao mesmo tempo nasceu para contrastar de modo radical a reforma litúrgica. E assim permanece também no Summorum pontificum, apesar das boas intenções declaradas.
Por isso, Francisco, para poder permanecer fiel ao Concílio Vaticano II, não podia deixar de revogar uma lógica “incerta e confusa” sobre a reforma litúrgica. O único rito vigente é o elaborado depois do Concílio, por indicações claras do próprio Concílio. Não existe outro rito: existe apenas a “forma anterior”, que, pelos seus graves limites, foi revista e remodulada. Sobre esse ponto, não há nenhum espaço de mediação possível.
A forma vigente do rito romano assume, em si mesma, a descontinuidade e a continuidade. Como é óbvio, como ocorre em todos os fatos históricos, não há uma sucessão de “mal” e de “bem”. Poderíamos dizer que no Vetus Ordo já estavam presentes elementos fundamentais do Novus Ordo, enquanto no Novus Ordo são trazidos à tona dimensões que o Vetus Ordo desenvolvia de modo diferente.
Mas não existe “concorrência”, porque o desenvolvimento da tradição não permite manter, ao mesmo tempo, a forma a ser modificada junto com a forma que a modifica. Só por um curto período de tempo, e sem continuidade, é possível aceitar um “interregno”: assim pensava Paulo VI, assim pensava Von Balthasar, assim pensava o próprio Giuseppe Siri. Mas isso é uma consequência de todos os processos de reforma geral.
O “rito extraordinário”, por isso, foi aquela ficção jurídica que, de fato, criou uma nova confusão na Igreja durante 14 anos. Como se fosse possível “permanecer católico” ignorando o Concílio Vaticano II! Essa hipótese é totalmente fictícia e foi possibilitada por um pastiche jurídico que a Comissão Ecclesia Dei tentou inutilmente mediar e só piorou, até ao paradoxo de uma superação do próprio missal de 1962.
A dilaceração eclesial é inevitável, se é possível celebrar a mesma eucaristia com um rito e com o rito que quis corrigir esse rito. Aqui era necessária, por parte do papa, uma palavra clara, que veio com autoridade com o Traditionis custodes, que restabelece o princípio antigo e moderno, segundo o qual existe um único “campo de trabalho” – ou seja, o único rito romano vigente – no qual é possível elaborar com cuidado toda a tradição celebrativa.
Em terceiro lugar, é evidente que uma “ameaça à recepção do Concílio” é apreciada em todos os lugares que não aceitam celebrar a eucaristia e todos os sacramentos na única forma vigente. Eu entendo bem que, entre aqueles que “fizeram uso do Summorum pontificum”, também haja diferenças muito significativas. Que nem todos querem ser “a verdadeira Igreja”.
Mas, no momento em que você celebra com um rito que não é vigente, você assume uma abordagem em relação à Igreja que se inclina inevitavelmente ao cisma. A palavra de clareza do Traditionis custodes restabelece não só o princípio da única lex orandi e da inexistência de uma “concorrência entre formas rituais diferentes”, mas também a unificação da “reforma” na única forma vigente.
Isso implica uma série de consequências bastante significativas, até mesmo para a perspectiva que o senhor, Dom Pateau, justamente considera importante. Trabalhemos juntos em uma única mesa, limpidamente conciliar, para uma boa recepção da reforma litúrgica, para a valorização de uma “ars celebrandi” que envolva radicalmente a assembleia, que gere ministérios, que envolva homens e mulheres, que renove o canto, a arte, as cores, os silêncios e os espaços. A Igreja não é um museu a se conservar, mas um jardim a se fazer florescer.
Uma última coisa, importantíssima. O Concílio Vaticano II não foi nem causa de crise, nem ocasião de crises, mas início solene para a saída de uma crise que estava presente, na Europa, há mais de um século.
Rosmini na Itália, Guéranger na França e, mais tarde, Festugière na Bélgica lamentavam já nos seus tempos a inadequação do celebrar católico. As formas de resistência à reforma litúrgica, que se expressaram nos princípios distorcidos assumidos também pelo Summorum pontificum, não serão superadas apenas pelo Traditionis custodes, mas somente por uma retomada de impulso daquele Movimento Litúrgico que preparou o Concílio, mas sem o qual o Concílio não saberá inspirar uma verdadeira resposta à “questão litúrgica”.
Sobre isso, creio eu, é possível que todos aqueles que trazem no coração o caminho eclesial comum, que não querem criar Igrejas paralelas, Igrejas puras, e que não permanecem fixados a formas rituais objetivamente superadas, saibam colaborar com uma melhor qualificação da liturgia católica.
Desse trabalho comum, serenamente inspirado no Concílio Vaticano II e nas reformas que dele brotou, poderemos ser, no futuro, convictos defensores, apesar dos percursos tão diferentes e das sensibilidades tão distintas.
Com uma cordial saudação,
Andrea Grillo
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A reforma litúrgica e seus opositores: uma resposta ao abade Pateau. Artigo de Andrea Grillo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU